ÓRGÃO OFICIAL DO COMITÊ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA DE CUBA
«Simplesmente não podia aceitá-lo, repetia que não, que isso não era certo. Tinha a esperança de que tivessem caído em alguma ilha, de que se tivessem salvado», conta Milady Tack-Fang, que foi esposa do treinador Orlando López Fuente.

DESCULPA-SE pelos desvarios, porque, às vezes, confunde as datas e os lugares ou não pensa nas palavras precisas. Ignacio Martínez é um homem que andou muito pela vida e já pesam na memória 92 anos. Mas, quando fala de seu filho não gosta de errar e se esforça por lembrar, ainda que o olhar se encharque por momentos e o sentimento seja quase palpável. «Há tristezas que me acompanham, inclusive no travesseiro». Então muda o fio da conversa.

Traz ao presente alguns episódios do passado e termina revivendo aqueles dias em que seu menino «vadiava» pelas ruas de Luyanó ou se banhava nos aguaceiros de maio, como qualquer outra criança. Porque isso foi muito antes da sabotagem, muito antes da dor....

Foi batizado com o mesmo nome do pai. Para nós foi Ignacio Martínez Gandía, o jovem treinador que, com apenas 25 anos, dirigiu a seleção cubana de sabre, nos Jogos Centro-americanos de 1976. Para ele, sempre será o garoto estudioso que nunca deu dores de cabeça à mãe e que guardava com zelo os cartazes pendurados na parede do quarto, todos em alusão ao esporte. «Vivo orgulhoso de meu filho, do homem em que se converteu, do professor que era».

A irmã de Ignacito, Mercedes, preenche as lacunas. «Eu tinha 17 anos quando ele morreu. Naquele dia 6 de outubro estávamos esperando-o em casa, com a mesa servida e o prato de que ele mais gostava: sopa de frango. Veja que preferências as de meu irmão! Mas naquela noite ninguém comeu. Recebemos a notícia que a gente nunca quer escutar».

Ela também se refugia no passado, porque há mágoas que são muito íntimas, difíceis de compartilhar. «Era um menino nobre, acho que é a palavra que melhor o define. Não gostava de discutir com ninguém nem buscar problemas. Muitas vezes era eu, sendo mais nova do que ele, quem saía em sua defesa quando outro menino começava a incomodá-lo, e queria brigar e bater. E ele dizia: “Minha irmã, para com isso, tanto faz”. Assim de bom era».

«Já de grande sempre andávamos juntos. Inclusive havia pessoas que pensavam que éramos um casal porque saíamos à rua de mãos dadas e nós nos ríamos disso. Ele o fazia também para cuidar-me, porque as namoradas não lhe faltavam. Quando o telefone da casa tocava e tocava, as mensagens eram para Ignacito».

Mechi — porque assim era chamada pelo irmão — também nos conta como seu irmão teve que aprender a viver com a diabete, depois de que os médicos a detectassem. «Isso foi três anos antes do atentado», comenta.

«A doença o levou a ser mais disciplinado com o que fazia. Seis colheres de sopa de arroz e seis de feijão, isso era o que se servia no prato, nem mais nem menos. Além disso, todos os dias anotava em um caderno o comportamento da glicemia. Era muito constante com isso».

Mercedes guarda com carinho a réplica da medalha que Ignacio Martínez, seu irmão, ganhou nos Jogos Centro-americanos de 1976.

Em pé, no corredor de há 40 anos, a irmã conta mais uma história: «Uma vez estava limpando aqui mesmo e ele chegou. Então para incomodar-me começou a dançar em meio da sala, ou melhor, fazia como se estivesse dançando, porque não sabia dançar muito bem. Lembro que eu comecei a brigar com ele e a dizer coisas e ia correndo atrás dele para que não sujasse a casa. Ele só ria. Eram coisas de criança».

Ensinou-nos um retrato, a última foto de Ignacito. Mercedes a guarda no banco da cozinha, ao lado de uma réplica da medalha que seu irmão ganhou como treinador naqueles Jogos Centro-americanos. E descobri que Ignacio não só tinha herdado o nome, mas também o olhar da gente humilde, singela, «boa praça» que delatam os olhos já cansados do pai.

Foi a foto que tomaram dele para o passaporte, relata. Então voltamos ao dia 6 de outubro, à sabotagem ao avião cubano. «Essa viagem esteve cheia de complicações. Os vistos não acabavam de chegar e não se sabia se finalmente ia poder participar do torneio.

«Ante tantos percalços, minha mãe quis dizer-lhe que não fosse, que ficasse em casa. Mas não disse nada. Sabia que Ignacio não escutaria suas palavras. Ele estava muito emocionado com a viagem, queria ganhar medalhas para Cuba».

Estava sentado em um degrau da escada, dessas que têm forma de caracol. Podia ver-se calmo, falador, com esse carisma tão próprio dele. Estava cercado de amigos, colegas do esporte. Talvez falavam de esgrima e técnicas de combate, talvez falavam de amores.

É a primeira lembrança que tem Milady Tack-Fang de quem foi seu esposo, Orlando López Fuentes. Foi em 1964, em um campeonato realizado em Havana. Depois saberia que essa foi também a primeira vez que Orlandito a viu, que tinha perguntado por ela, queria saber quem era essa garota de olhos puxados que se deslocava tão bem pela pista. Porque Orlando e Milady compartilhavam muitas coisas em comum, entre elas, a paixão pela esgrima.

«Depois coincidimos em outras competições e treinos, até que um dia se aproximou e elogiou minha técnica, minha forma de atacar. Naquele momento nem pensei que ele estivesse interessado em mim». Nove anos de casamento. Esse seria o resultado daquela conversa.

«Casamo-nos em 14 de fevereiro de 1968. E durante o tempo que durou, vivemos em uma eterna lua de mel».

Foi sua bengala, a mão amiga, o suporte que a alentava a ser melhor atleta. Orlando morreu com 34 anos, e o tempo apenas alcançou para ser campeão nacional de espada, contador de ofício e treinador internacional da equipe cubana.

«Lembro que quando fomos aos Jogos Pan-americanos do México, 1975, eu tinha que fechar o último combate. Caso vencesse, a equipe feminina de esgrima ia ser campeã pela primeira vez neste tipo de lide e, com certeza, eu estava bem nervosa. Orlandito me abraçou e me disse que tudo ia dar certo, que confiasse. Quando ganhei, ele também chorou de alegria, de orgulho».

«Era um homem muito carinhoso, muito sensível», diz Milady. Y como para testemunhá-lo mostra a carta que Orlando López escreveu para seu filho, o fruto desse amor, apenas um bebê. «Fê-lo por se algum dia ele não estava, para que soubesse quanto o queria».

«Quando possa ler estas linhas já você estará grande e sua mãe lhe terá falado muito de mim, irá contar-lhe muitas coisas e do muito que ela e eu nos quisemos, e quantas coisas e lembranças de amor e carinho tínhamos quando você nasceu. Você é para mim o melhor deste mundo, sempre me leve em seu coração e diante de cada gesto carinhoso e honrado estarei ao lado de você guiando-o e ajudando-o….»

Um excerto daquelas linhas, daquelas letras que se converteram em um testamento de amor. A carta está datada em 8 de agosto de 1973. Três anos mais tarde, depois do atentado, seriam para Milady e seu menino as únicas palavras de consolo.

«Eu tinha que ter estado naquele voo de Cubana», confessa. «Orlando queria que fosse». Dizia-me: «Chini, toca, vamos… Veja que é a última competição onde poderemos participar os dois juntos. Mas não pude. Havia apenas alguns dias que tinha retornado a Cuba de outro evento internacional, e em verdade, não me sentia em condições de viajar. Também tinha a necessidade, como mãe, de ficar ao lado de nosso filho, que apenas tinha três anos na época. Em meu lugar foi Nancy Uranga, uma esgrimista que já despontava em grande».

Naquele dia 6 de outubro de 1976, Milady foi receber seu esposo no aeroporto, com um vestido novo e o filho nos braços, como já era costume entre eles. «O voo devia chegar ao redor das 13h00, mas quando perguntei nos escritórios de Cubana de Aviação me disseram que não tinham confirmação, que estava atrasado. Foi assim que decidi retornar a casa e esperá-lo lá.

«Mas meu filho não queria ir embora. Ele quis ver como os aviões decolavam e pousavam na pista do aeroporto José Martí. Quando saímos ao terraço, havia um avião da Cruz Vermelha que estavam carregando de equipamentos médicos e outras caixas… pouco tempo depois decolou. Só depois percebi. Tudo estava relacionado».

«Nessa mesma noite houve uma reunião da FMC no quarteirão e eu estava aí, na casa da coordenadora. Lembro que às 20h30, depois que acabou o noticiário, alguém tocou a campainha do portão. Era minha sobrinha. O primeiro que pensei foi que tinha acontecido alguma coisa ao meu filho. Ou aos meus sogros, que viviam conosco. Ela só disse: “Milady. Por favor, saia um momento”. E minha preocupação foi maior. «Tio Orlando morreu», sussurrou. «Acabam de dizê-lo na televisão». Saí correndo para a casa».

«Meu sogro, que tinha escutado a notícia, confirmou o que eu me negava a acreditar. Simplesmente não podia aceitá-lo, repetia que não, que isso não era certo. Tinha a esperança de que tivessem caído em alguma ilha, de que se tivessem salvado».

Ao vê-la naquele estado, o cunhado ligou o carro e saiu para o aeroporto. Ao menos ia tentar conseguir outra informação, corroborar aquela verdade tão forte. Milady ficou sentada na calçada, esperando… Mas o infortúnio já tinha batido na porta.