ÓRGÃO OFICIAL DO COMITÊ CENTRAL DO PARTIDO COMUNISTA DE CUBA
No início de fevereiro de 2019, a oposição reunia a maior parte dos adversários do governo, bem como as massas, em uma tentativa de assalto ao poder. Foto: EFE

APARENTEMENTE, ninguém sabe o que acontece agora no Haiti, mas por mais de 200 anos todos sabemos exatamente: a primeira nação do hemisfério sul-americano a obter sua independência foi isolada desde então pelo restante das potências, que não perdoam àquele país caribenho seu outro grande marco na história: ter sido o fruto da única revolta de escravos bem-sucedida que é conhecida.

Enquanto na França se produzia a Revolução de 1789, os colonizados levaram em conta as ressonâncias da liberdade, da igualdade e da fraternidade, bem como a hipocrisia e o racismo de sua metrópole, empenhada em manter uma moral dupla em termos dos direitos do homem.

Em 2009, quando o Haiti já era de longe o país mais pobre do hemisfério, após séculos de isolamento e perseguição das potências que tentaram recolonizá-la, o presidente Barack Obama recebeu uma cópia das mãos do comandante Hugo Chávez de As veias abertas da América Latina, escrito por Eduardo Galeano. Este volume narra, entre outros episódios, o primeiro bloqueio comercial decretado pelos Estados Unidos na história, em 1806, dirigido à pequena nação do Haiti.

A rebelião das massas que temos visto no país vizinho, começou na verdade em julho do ano passado, quando o governo decretou o aumento dos preços dos combustíveis, o que gerou maior escassez, fome, falta de saúde, nas favelas da capital Port-au-Prince e no resto das aldeias do interior. Segundo fontes do governo, a medida foi ditada para aliviar os fundos do Estado das cargas subsidiárias que «manteriam a economia paralisada», com o qual se tentou culpar da recessão as massas haitianas sempre submissas.

Já um escândalo havia eclodido nas redes sociais, quando supostamente o presidente Donald Trump, teria se referido a El Salvador, Haiti e países africanos como shitholes (buracos de merda). Esse episódio enervou o nacionalismo haitiano, vítima das pungentes ocupações norte-americanas (1915-1934), que afundaram ainda mais o país na desigualdade, mais uma vez estabelecendo a segregação racial e o trabalho semi-escravo, com um massacre de 1.500 trabalhadores, tal como reconheceu em 1922 o Senado dos EUA.

Então, na manhã de 6 de julho de 2018, as massas raivosas e frustradas, sem objetivo ou organização política, atacaram todos os símbolos de poder. A polícia nacional, com três pagamentos em atraso, não fez nada para conter a avalanche de dois dias. O saldo: hotéis, restaurantes, lojas no meio do maior saque que é lembrado.

Foi o grito de liberdade dos oprimidos, que viram como os fundos da ajuda internacional desaparecem em um barril sem fundo. Foi a ira do habitante de bairros como o multicolorido Jalouse, onde a maioria das pessoas vive, para o qual o dinheiro que foi destinado não era para saúde, comida, eletricidade e remédios, mas para pintura, de modo que a partir do setor hoteleiro, nas proximidades, pudesse ser enxergado um «ângulo mais pitoresco».

Alguns chamam essa política da imagem dos governantes «o botox», em referência à maquiagem que tenta cobrir a verdadeira face do Haiti.

DE NOVO ÀS RUAS

No início de fevereiro de 2019, a oposição articulou a maioria dos adversários ao governo, bem como às massas na tentativa de atacar o poder. Juntamente com o aumento dos preços dos combustíveis, no ano passado, houve a depreciação da moeda haitiana, o gourde, com o qual é quase impossível comprar. Também os apagões e a crise de saúde e alimentos, que dela derivaram, capitalizaram os jovens contra o presidente Jovenel Moise.

Embora o número exato de mortes seja desconhecido, pelo menos sete foram notificadas desde o início dos protestos da oposição, mas o pior é o estado de prostração em que o país se encontra, com o encerramento total dos serviços mais essenciais para a vida, pelo qual os especialistas preveem a eclosão de outra crise humanitária. A deriva dos cortes do governo é conjugada com as dificuldades resultantes de furacões e terremotos, uma vez que o país, rico em

terras para exploração, também está em uma situação geográfica altamente vulnerável a desastres naturais e mudanças climáticas.

Para piorar ainda mais a situação, a ajuda humanitária da própria ONU, os capacetes azuis nepaleses, reconheceram sua responsabilidade na introdução do mais recente surto de cólera no Haiti, uma epidemia que ainda reclama milhares de vidas, especialmente crianças. Com um índice de desenvolvimento humano nos limites permitidos, a nação não está em posição de continuar com sua política de cortes, «botox» e aliança com poderes hegemônicos regionais, em detrimento de um plano de salvação nacional.

Os protestos contra Moise, um profissional de classe média que prometeu organizar as finanças do país, são liderados principalmente por jovens, muitos deles graduados em universidades que, apesar do esforço, não têm escolha senão empregos marginais, longe de perfil acadêmico

«Moise lançou programas de limpeza e disse que com eles criaria cerca de 50 mil empregos. Assim, aos jovens que se formam na universidade só pode oferecer vassouras?», disse à France Press Marco Beauséjour, 27, contador de pós-graduação, em um país onde a maioria da população sequer chega ao nível do ensino secundário. Para este setor profissional, o sentimento geral é de que o governo os está desrespeitando.

«Um governo que não pode dar comida e água a seu povo deve demitir, mas também é necessário que a burguesia pare de monopolizar toda a riqueza. Nos bairros populares somos mais», diz o jovem manifestante Prophète Hilaire à mesma agência de notícias. Apesar dos apelos ao diálogo e do reconhecimento da existência de uma crise no país por Moise, a oposição organizada rejeitou qualquer processo de negociação e só aceita a demissão do executivo.

Além da queda do valor da moeda e da inflação de preços (a ponto da escassez), os manifestantes argumentam que há casos de corrupção no topo do Estado. De acordo com uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas, constatou-se que pelo menos 15 funcionários públicos estão envolvidos em irregularidades relacionadas ao comércio de petróleo, informou a Efe. Esta investigação também apontou para empresas privadas do próprio presidente da nação.

O Setor Democrático e Popular, que articula a oposição, mantém o pulso nas ruas, com quase o único pedido que Moise demita. Até agora, este partido reúne toda a indignação das massas, naquela terra esquecida por muitos. Seria necessário analisar as propostas concretas de governo dos oponentes, já que o país, mais do que uma insurreição, precisa de um programa justo e racional.

FORA DAS PRIORIDADES

O Haiti permanece fora das prioridades das potências do hemisfério, que evitam pronunciar-se sobre a crise do país caribenho. Nas mais recentes manifestações em frente à Casa Branca contra uma invasão militar dos EUA à Venezuela, alguns cartazes puderam ser vistos: «Haiti, nunca nos esqueceremos de você».

Por outro lado, os EUA e o Canadá retiraram o pessoal de suas embaixadas, apenas deixando o que esteja pronto para ações de emergência. A legação espanhola também tomou medidas, em um ato de medo em face da avalanche de violência e insegurança que é vivida diariamente. No entanto, o Ocidente mantém uma posição de silêncio em relação ao Haiti, uma espécie de «eles são assim», que não carece de um certo matiz racista e colonial.

Na nação invisível, a governança é apenas um problema entre os muitos que se acumulam após décadas de ocupação estrangeira, governos ruins e uma ditadura grotesca (a era Duvalier). Um em cada dois haitianos é analfabeto, com quase 200 mil crianças que não estão na escola e que vão aumentar as massas enfurecidas.

Em barracos amontoados nas encostas de montanhas, expostos a futuros desastres naturais, políticos e econômicos, o vodu floresceu fortemente, uma resposta mágica e cultural à crise nacional. Diz a lenda que, através de uma cerimônia desta religião, Ogu se manifestou, o espírito que previu o sucesso da rebelião que daria a independência ao Haiti, mais de dois séculos atrás.