
LEMBRO-ME daquela vez, bem no início da Revolução cubana, quando, durante dias agitados, um homem de rosto indígena, tenaz e inquieto, já conhecido e admirado por muitos de nossos intelectuais, quis fazer meu retrato.
Pela primeira vez, vi-me submetido à torturante tarefa. Tinha de estar em pé e quieto, como me indicavam. Não sabia se duraria uma hora ou um século. Nunca vi ninguém se mover a tal velocidade, misturar tintas de tubos de alumínio como de pasta de dentes, mexer, acrescentar líquidos, olhar firme com olhos de águia, dar pinceladas a torto e a direito, sobre uma tela, como um relâmpago, e voltar os olhos para o assombrado objeto vivente de sua febril atividade, respirando forte, como um atleta na pista, em uma corrida de velocidade.
(...) Estava nada menos que em presença de um grande mestre e pessoa excepcional, que depois conheceria com crescente admiração e profundo afeto: Oswaldo Guayasamín. Ele teria, então, cerca de 42 anos.
Por três vezes, passei pela mesma inesquecível experiência, ao longo de mais de 35 anos, e na última vez, várias vezes. Continuava pintando da mesma forma, mesmo quando sua vista já sofria sérias e cruéis limitações, para um pintor como ele, incansável e irrefreável. O último foi um retrato com rosto mais ou menos similar aos anteriores e umas mãos grandes e ossudas, que ressaltavam a imagem do cavaleiro da triste figura que ele, quase no final de sua vida, ainda via em mim.
Guayasamín foi talvez a pessoa mais nobre, transparente e humana que conheci. Criava à velocidade da luz, e sua dimensão como ser humano não tinha limites.
Aprendi muito, nas conversas com ele; enriqueci minha consciência sobre o terrível drama da conquista, da colonização, do genocídio e das injustiças cometidas contra os povos indígenas deste hemisfério: uma dor lacerante que ele levava no fundo de seu coração. Era profundo conhecedor da história daquele drama.
Um dia em que estávamos em seu estúdio da casa aqui em Quito, perguntei-lhe quantas vidas indígenas tinham custado, em sua opinião, a conquista e a colonização. Respondeu-me imediatamente, sem hesitar: 70 milhões. Sua sede de justiça e reivindicação pelos que sobreviveram o holocausto foram a motivação fundamental de suas lutas. Mas, para ele, era necessário lutar não apenas pela justiça para os indígenas, senão para todos os povos da América, do Norte, do Centro e do Sul, que foram colônias ibero-americanas neste hemisfério, surgidos do crisol do martírio e da mistura de algozes e vítimas, que, junto com os descendentes de africanos escravizados e imigrantes da Europa e da Ásia, constituem as sociedades latino-americanas atuais, nas quais a exploração despiedada, o saqueio e a imposição de uma ordem mundial insustentável, destruidora e genocida matam, de pobreza, fome e enfermidades, em cada dez anos, tantos quanto os 70 milhões mencionados por Guayasamín, que morreram ao longo de séculos.
(...) Nada disso escapava ao pensamento profundo, ao calor e ao senso de dignidade humana de Oswaldo Guayasamín. Consagrou sua arte e sua vida a criar consciência, denunciar, combater e lutar por superá-lo.
Posso dar fé de sua coragem, que provocou a ira do império, e de seu compromisso social, de homem de vanguarda estreitamente vinculado aos humildes da Terra.
Excertos do discurso proferido na inauguração da Capela do Homem. Quito, Equador, 29 de novembro de 2002.