
O presidente Barack Obama enterra vários mitos com sua histórica visita a Cuba. Derruba a hegemonia da máfia cubano-americana sobre o importante estado da Flórida e sobre a verdade da Ilha maior das Antilhas. Teve o valor de prescindir da escabrosa maquinaria de Miami, não contar com seus votos, suas contribuições monetárias e sua habilidade para o engano.
Cuba e os Estados Unidos sustentaram durante mais de um século uma relação que muitos chamam eufemicamente de amor-ódio. Esta é uma nação que respeita os Estados Unidos, que se distingue porque não quis odiar o povo norte-americano, apesar de conhecer as apetências que Cuba despertou e desperta nos governos dessa nação. Apetites que baseadas na Emenda Platt ou na Lei Helms-Burton, ainda pretendem ignorar os direitos dos cubanos que são consagrados por mais de 100 anos de luta e pelos 20 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A paz e a tranquilidade que reinam em Cuba são cada dia mais universalmente reconhecidas. É uma realidade filha do exemplo de seus líderes, pois Fidel e Raúl fizeram sempre honra ao seu mestre José Martí. Talvez este seja o único país onde nunca foi queimada uma bandeira dos EUA. Jamais se pregoou o ódio a seus inimigos. Nas creches, às crianças aprendem civismo e ética, recitando os versos de José Martí: “E para o cruel que me arranca o coração com que vivo. Cardo e urtiga não cultivo, cultivo uma rosa branca”.
DOS VIAJANTES DOS EUA A CUBA 88% DELES FAVORECE PÔR FIM AO BLOQUEIO
Uma enquête do jornal EL Nuevo Herald, arquiinimigo da Revolução Cubana, e a agência AP, a cargo da firma Friendly Planet Travel, revelou que 88% dos viajantes estadunidenses a Cuba favorecem o fim do bloqueio à Ilha. O presidente Obama e o próprio John Kerry pediram ao Congresso que vote por terminar de vez com essa política chamada de embargo pelos governantes norte-americanos.
Nas Assembleias Gerais da ONU, a cada ano, 188 votos demandam o fim do bloqueio e apenas dois votam a favor, os EUA e Israel.
Não é por acaso que a estudante Jontay Darkol, da Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) — projeto que formou mais de 24 mil jovens profissionais da saúde procedentes de 84 países, onde não podiam custear esses estudos — admira os atos de cortesia quando muitos lhe estendem a mão para descer de um ônibus em Cuba. Darkol mora em Chicago, Illinois, estado em que Barack Obama foi eleito senador estatal desde 1997 até 2004, ano em que foi eleito senador dos EUA, sendo o primeiro afro-americano que chega à presidência dos EUA.
A jovem estudante de 5º ano dessa nobre carreira assegura que não sentiu ódio algum nem rancor a seu povo quando se apresentou perante os cubanos como uma norte-americana, foi recebida com carinho apesar da saga dessas relações... “O mais valioso na vida não são os objetos adquiridos nos mercados, senão a cultura aprendida”. (1)
Sua amiga, Shaneen White, há apenas seis meses iniciou seus estudos em Cuba e recém terminou um curso de idiomas que já lhe permite dominar a língua. Ela é de Tampa, Flórida, cidade que lidera as que reclamam restabelecer seus laços históricos com Cuba.
DA EMENDA PLATT À LEI HELMS-BURTON
No início do século 20, “os Estados Unidos estavam codificando as futuras relações com Cuba, através da Emenda Platt. No fim dessa centúria, o governo de Washington tentou fazê-lo com as leis Torricelli e Helms-Burton. Estes três documentos projetam uma reveladora imagem da histórica mudança revolucionária e uma pretendida transição de ideologia”, segundo a escritora Jane Franklin.
Essa pretensão data do século 18. O havanês Juan Miralles, comerciante de mercadorias diversas, entre elas as humanas, sentiu-se feliz quando foi escolhido pela Coroa espanhola para observar o processo de independência empreendido meses antes pelas treze colônias inglesas na América do Norte.
O esperto agente compreendeu logo que nessa terra havia um mercado prometedor e um fornecedor que, pela proximidade, em pouco tempo podia servir os pedidos que demoravam seis meses vir da Espanha.
Converteu-se assim em um colaborador aproveitado e admirador dos próceres norte-americanos, aos quais prestou valiosa ajuda material e moral. Longe estava então de imaginar quanto custaria à Espanha e a Cuba a estreita relação que contribuiu a criar, movidos todos não pela nobre causa da liberdade desse povo, senão por seus interesses pessoais e os das coroas espanhola e francesa, moderadamente beneficiadas caso conseguirem enfraquecer a metrópole inglesa.
A luta do povo cubano por atingir e preservar sua independência, antes face à Espanha e depois com o mais poderoso adversário da história, conta com mais de dois séculos.
Desde 1805, já o presidente norte-americano Thomas Jefferson advertia ao ministro inglês em Washington que, caso houver guerra contra a Espanha, os EUA se apoderariam de Cuba por necessidade estratégica.
E em 1823, o secretário de Estado de Monroe, John Quincy Adams, escrevia: “Cuba praticamente à vista de nossas costas, reviste por múltiplas razões uma importância capital para os interesses políticos e comerciais de nossa União... é praticamente impossível resistir à convicção de que a adesão de Cuba a nossa República federal será indispensável”. Assim se expressa a estratégia de esperar o minuto propício para fazer cair a fruta madura. Achando-se madura seria hora de justificar a guerra contra a Espanha a que se referiu Jefferson. O pretexto foi a explosão em Havana do encouraçado Maine, segundo o historiador Howard Zinn, uma das justificativas entre as esgrimidas por Washington para começar sua guerra. O eminente escritor compara isso com o bombardeio de Pearl Harbor, no Havaí e o golfo de Tonkin, no Vietnã.
Em 1901, foi aprovada no mesmo Congresso a Emenda Platt, essa Lei Helms do século passado, que também deu passagem a “uma transição democrática e pacífica em Cuba”. Em 20 de maio de 1902 se consumava no impressionante Palácio dos Capitães-Generais de Havana a transição cubana, de colônia para neocolônia. Essa data marca o fim da etapa colonial; mas também significou o início da luta contra a metrópole neocolonial que anunciaram José Martí e Antonio Maceo.
Nas duas guerras de independência de Cuba, as zonas oeste e leste do país tinham diferente situação econômica: a ocidental mais desenvolvida, com mais escravos, mais produção e mais facilidades de comércio do que a oriental. Esses fatores e a maturidade política atingida por alguns latifundiários com a influencia da Revolução Francesa, criaram as condições para que ao leste da Ilha se iniciasse a conspiração anticolonial, que derivou na luta armada pelo progresso socioeconômico, a abolição da escravatura e a emancipação.
Carlos Manuel de Céspedes — o Pai da Pátria — Perucho Figueredo e Pancho Vicente Aguilera pertencem ao grupo de latifundiários de Bayamo, iniciadores e executores da revolta.
A tomada de Bayamo, em outubro de 1868, foi a primeira vitória militar. As fileiras foram nutrindo-se de milhares de brancos, negros e mulatos livres que se incorporaram à luta nos dias posteriores a seu início, no dia 10 e deram ao fato um indubitável matiz popular do qual careceu a dos Estados Unidos, pois seus próceres, inclusive Jefferson e Washington, preferiram manter a escravidão dos afro-norte-americanos. Em Cuba se promulgou a liberdade dos escravos e assim deu início a uma contenda diferente da dos EUA.
Quase 40 anos depois, fazendo abuso do artigo terceiro da Emenda Platt, em 29 de setembro de 1906, o secretário de Guerra dos EUA, William Platt, assumiu o poder em Cuba. Era esta a segunda intervenção dos Estados Unidos na Ilha. A primeira foi em 1898 quando o exército espanhol já estava praticamente vencido.
O arraigado espírito independentista dos cubanos impediu que os EUA se anexassem Cuba, que levava muitos anos de lutas por emancipar-se. O país passou de mão em mão, presidido por Tomás Estrada Palma. Antes de abandonar a administração, os ocupantes garantiram as bases “legais” para a intervenção que privou os cubanos da independência, outorgou dezenas de concessões a empresas norte-americanas e estabeleceu-se um modelo de dominação baseado na dependência aos EUA. Confesso anexionista e candidato de Washington, através dele foi instaurado o lucrativo e rentável Acordo de Reciprocidade Comercial, vigente de 1904 a 1934.
A reeleição fraudulenta de Estrada Palma, em 1906, deu lugar a um levante, liderado por veteranos da Guerra de Independência e membros do Partido Liberal. Essa insurreição conhecida como “Guerrinha de Agosto” espalhou-se por várias províncias do país. Perante a crítica situação enfrentada pelo governo e sua incapacidade de sufocar o levante, o presidente, ignorando os reclamos dos rebeldes, pediu a terceira intervenção norte-americana. Theodore Roosevelt, então presidente dos Estados Unidos, enviou o secretário da Defesa dos Estados Unidos, William Taft, a bordo de navios de guerra. Estrada Palma e seu gabinete demitiram e em 29 de setembro de 1906 Taft assumiu o poder como governador geral. Duas semanas depois, Charles Magoon, substituiu Taft e manteve-se até 20 de janeiro de 1909. A partir de então, os capitais dos EUA se ampliaram e fortaleceram, Cuba ficou sob seu patrocínio até o triunfo revolucionário de 1959.
A Emenda Platt foi derrogada em 1934 por Franklyn Delano Roosevelt, depois de negociações e de incessantes protestos dos cubanos. Surgiram novos mecanismos inspirados na antiga Teoria Geral das Obrigações, que utilizava pressões e acordos da classe: dou para que dê; dou para que faça; faço para que faça; faço para que dê: pago e ordeno para que obedeça. Através dele se instaurou o Acordo de Reciprocidade Comercial, vigente de 1904 a 1934.
Já em 1928, os norte-americanos eram donos da indústria açucareira, dos serviços públicos, das ferrovias, das jazidas, da indústria do fumo, dos hotéis, da maioria das usinas, dos imóveis e até da dívida pública. Desembocou em outra revolução em 1933. A partir desse ano, o presidente Franklyn D. Roosevelt governou durante quatro períodos, em vez dos usuais dois, e colocou o Estado em combate para contestar a teoria neoliberal causadora da crise que atravessava o país e o mundo em 1929, semelhante à enfrentada de maneira bem-sucedida por Obama. Na América Latina substituiu as ocupações militares pela “Política do Bom Vizinho”. Em Havana deixou sem efeito a intrometida Emenda Platt e ao mesmo tempo fez com que abortasse o processo revolucionário até 1959.
A Lei Helms-Burton aprovada pelo presidente Clinton, em março de 1996, foi redigida por advogados da firma Bacardí e apresentada pelo senador Jesse Helms. Foi aprovada depois de realizarem voos sinistros durante vários dias no céu de Havana, provocações organizadas pelos grupos extremos de Miami, até que dois aviões foram abatidos. Essa lei outorga ao Congresso dos Estados Unidos a faculdade de definir quando um governo é legítimo. A lei não só é extraterritorial contra Cuba, mas também contra a soberania de todos os países.
Cuba foi alvo da mais prolongada guerra econômica da história, parte de uma guerra nas costas e céus contra navios e aviões, queimaram moradias e destruíram centros agrícolas e industriais. Em 4 de março de 1960, no cais de Havana, fizeram explodir o navio francês La Coubre e houve mais de cem mortos, entre eles, seis marinheiros franceses e centenas de feridos. Em 1976, foi a explosão do avião de Cubana em Barbados por terroristas que hoje ainda se passeiam por Miami e curtem da liberdade que lhes proveio o governo de George Bush.
Devia conhecer-se no mundo toda a verdade do chamado embargo. As chancelarias conheceram bem das pressões para que não se vendesse armas a Cuba, sabotava-se as que o faziam. Depois de abril de 1961 houve outras 570 ações terroristas, entre elas, 717 sérios ataques contra locais e indústrias. Nesse período, morreram 234 pessoas. “Aquele terrorismo provocou no total mais de 3.5 mil vítimas e dois mil mutilados”, informou Fidel.
Apesar de Obama ter restabelecido as relações diplomáticas e ter adotado várias medidas não tem parado, contudo, essa guerra não declarada. Mas estas ações reconhecem a resistência dos cubanos.
As condições esgrimidas nestes anos foram variando até ir dar ao principal objetivo do establishment: a transição ideológica. Esta visita poderia ser reveladora com diversas variantes. Por enquanto, de certa maneira, são já duzentos anos de luta.
(1) Granma Internacional, 11 de março 2016, p 126