QUANDO na terça-feira, 22 de março, o presidente Barack Obama pediu aos cubanos para “esquecer o passado” e “olhar para o futuro”, ele estava parado no mesmo palco a partir do qual falou, em 1928, o último presidente americano a visitar a Ilha.
“Hoje Cuba é soberana, seu povo é independente, livre, próspero, pacífico e está desfrutando de um governo próprio”, disse Calvin Coolidge no então Teatro Nacional, hoje Grande Teatro de Havana Alicia Alonso.
Foi o elogio que estava esperando o presidente Gerardo Machado para acabar de instaurar uma das ditaduras mais sangrentas da região.
O presidente Calado, como ele era apelidado, queria mostrar a Ilha como um exemplo de sucesso econômico e social para aqueles que seguiam as instruções de Washington. Os fuzileiros norte-americanos tentavam convencer, por outros meios, os soldados de Sandino na Nicarágua e os patriotas dominicanos.
“Eu conheço a história, mas não vou ser preso por ela”, disse Obama em 22 de março.
Mas, nesse intervalo de tempo, o antiimperialismo de Julio Antonio Mella, Rubén Martínez Villena e Antonio Guiteras, herdado de líderes da independência nacional, como José Martí, deu lugar, em 1959, à Revolução mais radical do nosso continente, como reação à dominação dos EUA. Teve que transcorrer mais de meio século de resistência para que outro presidente americano determinasse pisar a terra de Cuba, desta vez para tentar “deixar para trás os últimos vestígios da Guerra Fria”.
Mais de mil pessoas, a mais ampla representação da sociedade cubana atual, ouviu atentamente cada palavra do discurso do presidente.
“Ouvimos o discurso com respeito, mas não concordamos com alguns dos seus aspectos. Nós não podemos esquecer a história, nossos mortos, o impacto do bloqueio por tantos anos”, disse a este jornal Ernesto Freyre Casañas, representante da Central dos Trabalhadores de Cuba, fundada após a derrubada da ditadura de Machado.
“Eu gostaria de ter ouvido um pouco mais de desculpas pela intervenção, agressão, os ataques à soberania de Cuba e às pessoas desde a década de 1960”, disse entretanto Peter Kornbluh, co-autor do livro Diplomacia encoberta com Cuba. “Mas é politicamente difícil para um presidente pedir desculpas“.
“No discurso há muitas esperanças e boas intenções, mas têm pouca base na realidade histórica das relações entre Cuba e os Estados Unidos", opinou Jesus Arboleya, estudioso das relações entre os dois países.
A NOVA ESTRATÉGIA
Desde 17 de dezembro de 2014, Cuba e os Estados Unidos pretendem abrir um novo capítulo nas suas relações bilaterais, com a decisão dos presidentes Barack Obama e Raul Castro.
O membro da Plataforma Interreligiosa Cubana, Enrique Aleman, tem dúvidas sobre a interpretação que Washington faz de sua ‘nova política’ em direção à Ilha. “É uma estratégia limpa, é uma abordagem limpa para nosso povo?”, pergunta.
Obama disse ontem que os Estados Unidos não queriam ser o inimigo de Cuba ou tentar modificar seu sistema econômico e político. “Cultivo uma rosa branca” citou o presidente um conhecido verso de um poema de José Martí e disse que oferecia ao povo cubano uma “saudação de paz”.
Leyde Rodriguez Hernandez, professor das Relações Internacionais, garantiu que Obama teve um descuido ou ignorância sobre o pensamento do Apóstolo. “Ele viveu nos Estados Unidos e exaltou seus valores, mas fez grandes críticas a essa democracia nascente que, já naquela época era vista como uma plutocracia, como um governo dos ricos, pelos ricos e para os ricos. E essa tendência só tem se agravado no século XXI”.
UMA CARGA OBSOLETA
De Havana, o presidente dos Estados Unidos solicitou novamente ao Congresso dos EUA para levantar o bloqueio contra Cuba e o qualificou de “uma carga obsoleta sobre o povo cubano”.
O público respondeu com aplausos e ficando em pé, incluindo legisladores democratas e republicanos que acompanharam o presidente nesta viagem.
O representante democrata de Massachusetts, James McGovern, quem vem defendendo esta causa há muitos anos, disse ao jornal Granma que elogiava ambos os presidentes por aquilo que têm feito; mas “agora é o momento para o Congresso fazer sua parte e levantar a embargo (bloqueio)”.
O senador republicano Jeff Flake, que, juntamente com o democrata Patrick Leahy, leva adiante um projeto de lei sobre a liberdade de viajar a Cuba, disse ao nosso jornal que além das mudanças reguladoras anunciadas pelo governo, o legislativo tem de se livrar totalmente dessa proibição.
Tom Emmer, representante republicano de Minnesota acredita que a visita e o discurso do presidente ajudam a colocar a questão perante o grande público estadunidense; e ajuda a fazer avançar o projeto que ele está tentando levar na frente, em parceria com a congressista democrata da Flórida, Kathy Castor, para levantar alguns elementos do bloqueio.
OPORTUNIDADES NA ESTRADA
As possibilidades de cooperação foram um assunto abordado pelo presidente dos Estados Unidos, que destacou “o serviço que milhares de médicos cubanos têm realizado aos pobres, aos que sofrem”.
Pedro Luis Veliz Martinez, diretor do Conselho Nacional de Sociedades Científicas da Saúde, disse que os intercâmbios neste setor não podem ser resumidos a situações de catástrofes ou epidemias, como é o caso do enfrentamento conjunta ao Ébola na África ocidental. “A colaboração é também respeitar o trabalhador internacionalista cubano e não induzir à deserção dos profissionais da saúde em países terceiros, o que dilacera a formação de recursos humanos de nosso povo”.
Ele também destacou a possibilidade de que seja aberta a venda de produtos cubanos no mercado dos EUA. “Temos conseguido muitas coisas com nosso esforço e sacrifício. Não aceitamos esse olhar de superioridade porque nós, neste domínio, temos provado nosso valor”.
Nicolay Casano, por sua vez, é uma evidência tangível de que poderia ser alcançado. Sentado ao lado de dezenas de outros colegas, este estudante de segundo ano, de Nova York, que estuda o segundo ano de Medicina, relata que os cubanos têm “um coração muito grande”. Mesmo com a presença do bloqueio teve a oportunidade de começar a estudar sua carreira na Ilha e diz que, em seguida, pretende voltar à sua comunidade para fazer a diferença no conceito de atendimento ao paciente que não se baseie no dinheiro.
NOSSO PRÓPRIO MODELO
“O futuro de Cuba deve estar nas mãos do povo cubano”. Com essas e outras palavras Obama expressou-se em futuro, acerca de uma realidade que muitos apreciam no presente.
O cantor e compositor Raul Torres diz que Obama destacou vários elementos positivos da realidade cubana, mas desconheceu que são o fruto da própria Revolução.
“Nós somos jovens com poder, que temos a oportunidade de fazer o que queremos neste país, além de ter algo tão importante como a certeza da educação e da saúde”, disse o autor de peças como Candil de Nieve e Regreso del Amigo.
“Nos Estados Unidos temos uma imagem clara do que pode fazer o povo cubano e isso se chama Miami”, disse Obama em outro ponto do seu discurso.
O professor Leyde Rodriguez disse a este jornal que as transformações que ocorrem no país não são para “copiar o modelo político de ninguém”.
Luis René Fernández, professor e pesquisador do Centro de Estudos Hemisféricos e dos Estados Unidos, na Universidade de Havana, assegura que as mudanças que experimenta o país são guiadas pelo objetivo de construir um socialismo próspero e sustentável, inspirado no projeto nacional dos grandes pensadores políticos e patriotas do nosso país.
Disse que a melhoria começou pela parte socioeconômica, mas isso não significa que não existam outros setores, tais como o sistema sóciopolítico, que também deve ser melhorado. A este respeito, ele citou a explicação oferecida recentemente em uma entrevista coletiva pelo presidente Raúl Castro sobre direitos humanos e democracia. “Ninguém sabe exatamente como poderá ser esse socialismo, mas tem de ser à nossa medida, à cubana”.
O livro de Peter Kornbluh, publicado em 2014, termina com uma série de recomendações para melhorar as relações entre Washington e Havana.
A pedido deste jornal, Kornbluh concordou em resumir em uma única ideia o que deve acontecer para continuar avançando neste caminho: “Os Estados Unidos devem tratar Cuba com respeito, como um país independente no que diz respeito à sua soberania, não podem ditar o futuro ou as ações do governo ou do povo”.