
Há uns meses – antes que fôssemos açoitados pela Covid-19 – eu li uma crônica de viagem sobre Cuba, escrita por certo literato nacional residente no exterior, quem confessava estar redescobrindo a Ilha depois de vários anos de ausência.
Durante um par de semanas, o dito senhor percorreu o país de um extremo ao outro, e vice-versa, para deixar-nos como sequela cinco páginas repletas de palavras como santero (pai de santos), palmeira real, daiquiri, mulata, asere (sujeito), balseiro, frutabomba (mamão), jinetera (prostituta), yuca con mojo (mandioca com tempero), picadillo de soya (carne picada misturada com soja), cucurucho de maní (amendoim torrado), amarillos (arroz pintado) e pão com pasta.
A crônica cheirava a Cuba, mas não era Cuba. Enquanto lia, eu me lembrava da primeira viagem de Cristóvão Colombo, quando no retorno à Espanha apareceu na Corte com aqueles índios nus, cobertos de penas e gatafunhos de cores; em uma mão a lança e na outra um papagaio que chilreava palavras em castelão.
Eu me lembrava, também, da surpresa de Jorge Luis Borges perante uma observação de Gibbon em sua História da declinação e queda do Império Romano. Gibbon dizia: «No Alcorão, livro árabe por excelência, não há camelos».
Há mesmo, naturalmente. Eu tenho um exemplar do Alcorão em formato PDF, e, lançando mão do buscador, pude achar essa palavra na página 40. O detalhe, contudo, não resta méritos ao conceito. Se um turista ocidental escrevesse uma crônica sobre os árabes, não deixaria de prodigalizar-nos caravanas de camelos em cada página. Mahomé, em troca, sabia que podia passar por árabe sem necessidade de mencionar essa palavra.
Um pensamento sempre acarreta outro, e de repente tive a ideia – igualmente mediante o buscador – de interrogar vários autores que a crítica e a tradição indicam entre os mais representativos da literatura cubana. Vasculhei em livros emblemáticos de Carpentier e Lezama: obras cheias de personagens que destacam por seus sonhos, esperanças e conflitos existenciais; mas neles não consegui achar nem um só amendoim, nem um mamão nem objeto algum daqueles que costumam ser usados para estereotipar o cubano.
Se concordássemos com Fernando Ortiz no sentido de que cubanidade é «condição da alma, complexo de sentimentos, ideias e atitudes», enquanto cubania é «cubanidade plena, sentida, consciente e desejada; cubanidade responsável», então resulta óbvio que ambos os termos entranham coisas que não podem ser tocadas com a mão. São transcendentais derivados do ser, não do ter; impressões que transbordam e superam dialeticamente o mundo das formas. Espantoso é que José Martí, aos seus 16 anos, já tinha claro o conceito.
Enquanto lia a crônica de referência (que realmente é apenas uma pequena mostra de outras tantas, incluindo contos e romances que puxam e arrematam a pseudocubanidade em idênticos mercados) também me perguntava: Que elementos uniram nossos mais insignes escritores quando esta terra de graça chamada Cuba deixou de ser tão só «a erva que pisam nossos pés», para se converter no cúmulo de emoções que subjaz por trás da palavra Pátria?
Durante o século 19 tivemos notáveis poetas provenientes de diversas classes ou camadas sociais, algumas delas fortemente enfrentadas: um filho de berço rico como José Maria Heredia; outro de berço pobre como José Jacinto Milanés, um negro escravo como Juan Francisco Manzano, um mulato livre como Gabriel de la Concepción Valdés, una chamada mulher do lar como Luisa Pérez de Zambrana, uma rebelde como Gertrudis Gómez de Avellaneda, um camponês nato como Juan Cristóbal Nápoles Fajardo, um jovem citadino como Julián del Casal; um ser, sobre o qual pairam sentimentos controversos, como Juan Clemente Zenea, e um patriota imaculado, de pensamento universal, como José Martí. Que recôndita essência unia essa massa diversa? Obviamente, não era «o amor ridículo à terra»; estavam ligados por um já pungente sentimento de cubanidade; o abraço que juntos davam à Pátria.
Ora bem, como cubania é «cubanidade responsável», em 10 de outubro de 1868 um grupo de homens pega nas armas à procura da «cubanidade plena», da cubanidade «desejada e consciente». Já não se tratava de exercer a condição a partir de uma querência ou um costume, de repente tinha surgido um sentimento de consagração (termo que eu não escolho por acaso, mas porque expressa a ação de se entregar em corpo e alma ao sagrado). A história é conhecida, não vou repeti-la; com esta menção solo quis sublinhar que a cubania não pode ser contemplativa nem puritana; entranha uma tomada de partido em prol de determinados princípios, de determinados valores.
Também quero significar que se a cubania é substância que fertiliza o amor à pátria, adulterá-la ou lucrar por conta dela, no mais inocente dos casos simplesmente a nega.
José Martí disse: «Pátria é humanidade, aquela porção da humanidade que vemos mais perto e na qual nos coube nascer»; e é esta uma evidente expressão de concórdia. Mas, que é o humano? Acaso aquilo que nos ridicularize ou reduza a curiosos corvos que, na contramão de sua natureza acumuladora de objetos, de repente armazenam coisas de suposto escasso brilho? Ou é o que dignifica e coloca em elevadas cotas de justiça, conhecimento e amor pela condição humana?
Extirpada de sua ampla conotação, a frase «Pátria é humanidade» muitas vezes tem sido maliciosamente apresentada como um apelo a diluir no ambíguo aqueles afetos medulares que devemos a esta «porção da humanidade em que nos soube nascer». Também foi usado como punhal arteiro para não acreditar ou virar-lhe as costas, e ainda olhá-la a partir da alienação ou a má fé, com o claro objetivo de erodir valores, símbolos, credos e caros orgulhos que conformam a nossa identidade cultural.
Certamente, chegará um dia em que nós os humanos sejamos um único povo, mas essa cultura global não poderá estar erguida sobre as ruínas do que somos.
Cubania é cubanidade responsável, diz Fernando Ortiz, e depois acrescenta: é «cubanidade com as três virtudes, ditas teologais: fé, esperança e amor». Quero dizer, não se trata de abrir mão do pensamento crítico ou do afã de perfeição humana; também não de olhar-nos como novos Narcisos na água da vã lisonja; mas sim, voltando a Martí: «A linguagem é fumaça quando não serve de vestido ao sentimento generoso ou à ideia eterna».







